quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Blue Marble


Imagens da Terra captadas pela Nasa em 4 de janeiro.
Foto completa, em alta resolução, aqui.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

‘Enthousiasmos’ de Elias: uma visão de PKD


Eu repentinamente tive o que mais tarde descobri que se chama ANAMNESE. Uma palavra que em grego significa, literalmente, “perda do esquecimento”.

Eu lembrei quem eu era e onde eu estava. Em um instante, em um piscar de olhos, tudo voltou à minha memória e eu podia não apenas me lembrar, como eu podia ver. E vi o mundo como se fosse na época dos tempos apostólicos cristãos, a Roma Antiga, quando o símbolo do peixe era usado. Durou apenas alguns segundos e logo fui tomar meu remédio para a dor. Eu estava tendo uma hemorragia.

(...) Um mês depois, tudo voltou a infiltrar-se de novo. Não havia como impedir. A transformação ocorrera e ficou por um ano. Aquilo invadiu minha mente e assumiu o controle, agindo e pensando por mim. Eu era um espectador. Eu li seus pensamentos uma noite e ele estava pensando: “Há uma outra pessoa que vive em minha mente, que vive em outro século”. E era eu.

Trechos de “A experiência religiosa de Phillip K. Dick”*, by Robert Crumb..

Clique aqui para ler a íntegra da HQ. 

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(*) Na pág. 2 parece haver um engano de tradução, onde se lê “Vivíamos com medo de sermos descobertos pelos cristãos”. Acho que deveria ser “...pelos ROMANOS”.


Dick, profícuo escritor estadunidense, morreu em 1982 vítima de um A.V.E. Algumas de suas obras foram adaptadas para o cinema por grandes cineastas. Dentre outros: J. “Blade Runner” Cameron, P. “Vingador do Futuro” Vernoheven, S. “Minority Report” Spielberg.

domingo, 1 de janeiro de 2012

'Domine non sum dignus'

Por entre as vielas sórdidas e sombrias da Salária, um dos tipos mais populares era o velho Flaminius, o Sereno. Pela manhã, muito cedo ainda, arrastando-se lentamente, deixava o seu miserável tugúrio e dirigia-se para o pátio da Semita, em busca de sol, sob as árvores ferrugentas. (...)

Flaminius, que agora arrastava a sua triste decrepitude na Salária, tivera, em sua vida, um período de prosperidade e alegria. Casara-se com uma camponesa da Sicília e tivera dois filhos. Um deles — Cláudio, o Belo — fizera-se poeta. Tornara-se popular na corte. As suas poesias eram declamadas pelos nobres e elogiadas pelo imperador. Até os cônsules, altivos, com prestígio entre os senadores, invejavam os triunfos do jovem Cláudio.

Flaminius orgulhava-se daquele filho, que os deuses haviam cumulado de talento. Mas Cláudio era ambicioso. Ligou-se a um certo Marcus Lucius, político sem escrúpulos, que Tibério escolhera, no período mais agitado de seu governo, para pacificar uma província grega. Lucius partiu e levou o poeta. E, de Atenas, Cláudio jamais regressou.

O desaparecimento do filho amado navalhou o coração de Flaminius. Abandonou o trabalho em Nápoles e passou a viver em Roma, entre aventureiros da pior espécie, sem pão, sem conforto, sem esperança. Sua esposa o deixou e foi para a Espanha, com alguns parentes ricos. O filho mais moço fez-se soldado e alistou-se nas legiões de César.

E, no entanto, Flaminius, no meio de tanta desgraça, sentia-se feliz. As palavras que ele ouvira de um oráculo do Templo de Vesta enchia o seu coração de esperanças.

***

— Há vários anos passados (reinava o divino Augusto), em Nápoles, certa noite, socorreste um viajante que fora assaltado no porto. Graças a teu auxílio, ele conseguiu livrar-se dos sicários. Esse viajante era precisamente eu. Devo-te, portanto, a vida. Quero agora prestar-te igualmente um benefício. Vou ler o teu futuro.

Flaminius parou diante do oráculo. Cruzou os braços sobre o peito e aguardou impassível a terrível e arrebatada sentença. Curiosos que perambulavam entre as colunas aproximaram-se em silêncio.

— O teu nome será esquecido. A tua memória será apagada por completo e desaparecerá como as cinzas levadas pelo vento. Mas as palavras admiráveis de teu filho jamais serão olvidadas. Milhões e milhões de homens, no desenrolar dos séculos, repetirão por todos os recantos do mundo as palavras de teu filho! Que júbilo, que glória imensa para o teu coração de pai!

Ao retornar ao seu casebre de Salária, o velho Flaminius assim meditava:

— Vivi sempre obscuro; morrerei esquecido e obscuro. Não importa! Mas a glória perpetuará, sobre a terra, o nome de Cláudio, meu filho. Os seus versos adoráveis, que César não se cansava de repetir, serão lembrados pelos homens, no desenrolar dos séculos!

 ***

E o velho Flaminius, a quem as palavras do oráculo deram alento para resistir a todas as amarguras e vicissitudes de sua negra existência, teve um fim trágico. Ao regressar, um dia, de uma visita ao Templo de Júpiter, avistou, num recanto da praça Salutis, um soldado espancando cruelmente uma pobre menina. Revoltado com aquela covardia, tentou o ancião socorrer a pequena. O agressor, irritado com a intervenção daquele desconhecido, não exitou em atravessá-lo com uma punhalada.

Flaminius pereceu heroicamente. E no dia seguinte, um mendigo sem rumo, no seu andar bamboleante, avistou casualmente a miserável mansarda em completo abandono, na Salária. Apoderou-se dela, atirou para ali seus trapos, sem indagar do destino que levava o primitivo dono.

E assim como previra o oráculo, como a cinza que o vento espalha, apagou-se entre os homens a lembrança daquele que fora em vida Flaminius, o Sereno.


Conduzido à mansão dos justos, viu Flaminius surgir diante dele a figura radiosa de um Anjo.

— Flaminius — disse o enviado de Deus, em tom mavioso de paciência —, a tua morte gloriosa fez remir todos os erros e pecados de tua existência. Cabe-te, pois, uma recompensa no Céu. Fala, meu bom amigo, e o Eterno ouvirá a tua voz.

Respondeu Flaminius na sua simplicidade:

— Nada fiz, estou certo, para merecer a menor recompensa da misericórdia de Deus. Confesso, porém, que tenho o coração torturado por uma grande angústia. Gostaria de retornar ao mundo, no fim de alguns séculos, a fim de verificar se os homens (conforme me garantiu o oráculo) conservam, na memória, os versos de meu filho. Que indizível alegria para mim certificar-me de que meu filho, por seu gênio incomparável, se tornou imortal!

Deus, na sua infinita misericórdia, atendeu ao pedido daquele pai. E decorridos dezenove séculos, Flaminius, conduzido por um Anjo, retornou a Roma.

***

Por todos os recantos da terra erguiam-se cruzes. A religião que César havia desprezado, a princípio, e perseguido mais tarde, vencera, afinal, e dominava o mundo.

Flaminius, o Sereno, guiado pelo Anjo, entrou num grande Templo cristão. Milhares de fiéis achavam-se em oração; um jovem sacerdote, revestido de riquíssima paramenta, debruada com fios de ouro, junto a um belíssimo altar, adorava o verdadeiro Deus, Jesus, Nosso Senhor!

Flaminius não cabia em si de deslumbramento! Tudo ali era para ele motivo de indescritível assombro! E balbuciou muito humilde (e suas palavras só eram ouvidas pelo Anjo):

— E os versos de meu filho? Poderei ouvi-los, aqui, neste Templo, cheio de cristãos, que erguem para os céus as suas preces lamuriantes?

— Sim — confirmou o Anjo —, dentro de alguns instantes! Rejubila-te! Todos os cristãos, aqui reunidos, repetirão as palavras de teu filho!

Decorridos alguns minutos, cessaram os cânticos. Fez-se profundo silêncio. E o sacerdote, batendo no peito três vezes, suplicou cheio de humildade e confiança:

— DOMINE NON SUM DIGNUS UT INTRES SUB TECTUM MEUM... ("Senhor, eu não sou digno de que entreis na minha casa...").

— Eis aí — acudiu o Anjo. — Acabaste de ouvir! Foram estas palavras proferidas, há muitos séculos, por teu filho, e até hoje os homens as repetem diante de Deus! Sinto dizer-te, porém, que não são versos de Cláudio, o poeta; são simples palavras proferidas por Marcelo, teu filho mais moço...

Flaminius quedou um momento perplexo e replicou, esboçando um sorriso pálido:

— Aquele que se fez soldado?

— Sim — confirmou o Anjo, num tom de absoluta confiança —, aquele que se alistou nas legiões de César!

***
Marcelo era um homem bom e caridoso: apiedava-se dos sofrimentos alheios; socorria os pobres; consolava os aflitos. Quando servia às ordens de Herodes, tetrarca da Galiléia, um dos seus servos adoeceu com uma grave paralisia. Marcelo, que, nesse tempo, fora promovido, já era centurião. E todos os homens de sua centúria o estimavam.
Inspirado pela delicadeza de sua sensibilidade, cuidou Marcelo de acudir, com desvelo, ao servo enfermo. Todos os remédios, aconselhados por amigos e vizinhos, ele experimentara, sem resultado. Alguém sugeriu:

— Chefe! Por que não apelas para Jesus de Nazaré? Dizem que o Rabi faz milagres!

Marcelo era puro de coração e, muito embora fosse romano, acreditava naquele Rabi, cheio de simplicidade e candura, que sorria para as criancinhas e curava os enfermos com o simples estender suave de suas divinas mãos.

Não se atreveu, porém, a ir procurar Jesus e pediu a alguns israelitas que fossem em busca do Mestre, de cujo amparo o infeliz servo tanto necessitava.

Jesus, Nosso Senhor, com seus discípulos, dirigia-se para Cafarnaum, quando recebeu o pedido de dois anciãos, amigos de Marcelo. E disse aos que o acompanhavam.

— Irei até lá!

Quando o centurião romano foi informado de que Jesus de Nazaré, em pessoa, se dirigia para a sua morada, levantou-se imediatamente a passos rápidos seguido de alguns ajudantes e servos e foi ter, muito respeitoso, ao encontro do Mestre. E disse-lhe, com extrema humildade:

— Senhor! Eu não sou digno de que entreis em minha morada (Domine, non sum dignus). Basta que digais uma só palavra e, estou certo, meu servo estará para sempre curado!

E, como Cristo o fitasse surpreendido, ajuntou:

— Porque eu, Senhor, sou militar e sei muito bem o que é obedecer e o que é mandar! Estou sujeito à autoridade de meus chefes, e tenho soldados às minhas ordens! Digo a um: “Vai!”. E ele segue o rumo que indiquei. Digo a outro: “Vem cá!”. E ele se aproxima de mim! Basta, pois, Senhor, uma só palavra Vossa, e meu servo será salvo.

Ouvindo isso, Jesus se admirou; e, voltando-se para o povo que o seguia, disse:

— Em verdade, em verdade vos digo que nem em Israel achei tão grande fé.

E disse ao bom centurião:

— Vai, e faça-se como tu crês!

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By Júlio César de Mello e Souza (Malba Tahan)
In: "Os melhores contos" (Rio de Janeiro: Record, 1994)