O
sol mostra-se num dos cantos superiores do rectângulo, o que se
encontra à esquerda de quem olha, representando, o astro-rei, uma cabeça
de homem donde jorram raios de aguda luz e sinuosas labaredas, tal uma
rosa-dos-ventos indecisa sobre a direcção dos lugares para onde quer
apontar, e essa cabeça tem um rosto que chora, crispado de uma dor que
não remite, lançando pela boca aberta um grito que não poderemos ouvir,
pois nenhuma destas coisas é real, o que temos diante de nós é papel e
tinta, mais nada. Por baixo do sol vemos um homem nu atado a um tronco
de árvore, cingidos os rins por um pano que lhe cobre as partes a que
chamamos pudendas ou vergonhosas, e os pés tem-nos assentes no que resta
de um ramo lateral cortado, porém, por maior firmeza, para que não
resvalem desse suporte natural, dois pregos os mantêm, cravados fundo.
Pela expressão da cara, que é de inspirado sofrimento, e pela direcção
do olhar, erguido para o alto, deve de ser o Bom Ladrão. O cabelo, todo
aos caracóis, é outro indício que não engana, sabendo-se que anjos e
arcanjos assim o usam, e o criminoso arrependido, pelas mostras, já está
no caminho de ascender ao mundo das celestiais criaturas. Não será
possível averiguar se este tronco ainda é uma árvore, apenas adaptada,
por mutilação selectiva, a instrumento de suplício, mas continuando a
alimentar-se da terra pelas raízes, porquanto toda a parte inferior dela
está tapada por um homem de barba comprida, vestido de ricas, folgadas e
abundantes roupas, que, tendo embora levantada a cabeça, não é para o
céu que olha. Esta postura solene, este triste semblante, só podem ser
de José de Arimateia, que Simão de Cirene, sem dúvida outra hipótese
possível, após o trabalho a que o tinham forçado, ajudando o condenado
no transporte do patíbulo, conforme os protocolos destas execuções, fora
à sua vida, muito mais preocupado com as consequências do atraso para
um negócio que trazia aprazado do que com as mortais aflições do infeliz
que iam crucificar. Ora, este José de Arimateia é aquele bondoso e
abastado homem que ofereceu os préstimos de um túmulo seu para nele ser
depositado o corpo principal, mas a generosidade não lhe servirá de
muito na hora das santificações, sequer das beatificações, pois não tem,
a envolver-lhe a cabeça, mais do que o turbante com que sai à rua todos
os dias, ao contrário desta mulher que aqui vemos em plano próximo, de
cabelos -soltos sobre o dorso curvo e dobrado, mas toucada com a glória
suprema duma auréola, no seu caso recortada como um bordado doméstico.
De certeza que a mulher ajoelhada se chama Maria, pois de antemão
sabíamos que todas quantas aqui vieram juntar-se usam esse nome, apenas
uma delas, por ser ademais Madalena, se distingue onomasticamente das
outras, ora, qualquer observador, se conhecedor bastante dos factos
elementares da vida, jurará, à primeira vista, que a mencionada Madalena
é esta precisamente, porquanto só uma pessoa como ela, de dissoluto
passado, teria ousado apresentar-se, na hora trágica, com um decote tão
aberto, e um corpete de tal maneira justo que lhe faz subir e altear a
redondez dos seios, razão por que, inevitavelmente, está atraindo e
retendo a mirada sôfrega dos homens que passam, com grave dano das
almas, assim arrastadas à perdição pelo infame corpo. É, porém, de
compungida tristeza a expressão do seu rosto, e o abandono do corpo não
exprime senão a dor de uma alma, é certo que escondida por carnes
tentadoras, mas que é nosso dever ter em conta, falamos da alma, claro
está, esta mulher poderia até estar inteiramente nua, se em tal preparo
tivessem escolhido representá-la, que ainda assim haveríamos de
demonstrar-lhe respeito e homenagem. Maria Madalena, se ela é, ampara, e
parece que vai beijar, num gesto de compaixão intraduzível por
palavras, a mão doutra mulher, esta sim, caída por terra, como
desamparada de forças ou ferida de morte. O seu nome também é Maria,
segunda na ordem de apresentação, mas, sem dúvida, primeiríssima na
importância, se algo significa o lugar central que ocupa na região
inferior da composição. Tirando o rosto lacrimoso e as mãos
desfalecidas, nada se lhe alcança a ver do corpo, coberto pelas pregas
múltiplas do manto e da túnica, cingida na cintura por um cordão cuja
aspereza se adivinha. É mais idosa do que a outra Maria, e esta é uma
boa razão, provavelmente, mas não a única, para que a sua auréola tenha
um desenho mais complexo, assim, pelo menos, se acharia autorizado a
pensar quem, não dispondo de informações precisas acerca das
precedências, patentes e hierarquias em vigor neste mundo, estivesse
obrigado a formular uma opinião. Porém, tendo em conta o grau de
divulgação, operada por artes maiores e menores, destas iconografias, só
um habitante doutro planeta, supondo que nele não se houvesse repetido
alguma vez, ou mesmo estreado, este drama, só esse em verdade
inimaginável ser ignoraria que a afligida mulher é a viúva de um
carpinteiro chamado José e mãe de numerosos filhos e filhas, embora só
um deles, por imperativos do destino ou de quem o governa, tenha vindo a
prosperar, em vida mediocremente, mas maiormente depois da morte.
Reclinada sobre o seu lado esquerdo, Maria, mãe de Jesus, esse mesmo a
quem acabamos de aludir, apoia o antebraço na coxa de uma outra mulher,
também ajoelhada, também Maria de seu nome, e afinal, apesar de não lhe
podermos ver nem fantasiar o decote, talvez verdadeira Madalena. Tal
como a primeira desta trindade de mulheres, mostra os longos cabelos
soltos, caídos pelas costas, mas estes têm todo o ar de serem louros, se
não foi pura casualidade a diferença do traço, mais leve neste caso e
deixando espaços vazios no sentido das madeixas, o que, obviamente,
serviu ao gravador para aclarar o tom geral da cabeleira representada.
Com tais razões não pretendemos afirmar que Maria Madalena tivesse sido,
de facto, loura, apenas nos estamos conformando com a corrente de
opinião maioritária que insiste em ver nas louras, tanto as de natureza
como as de tinta, os mais eficazes instrumentos de pecado e perdição.
Tendo sido Maria Madalena, como é geralmente sabido, tão pecadora
mulher, perdida como as que mais o foram, teria também de ser loura para
não desmentir as convicções, em bem e em mal adquiridas, de metade do
género humano. Não é, porém, por parecer esta terceira Maria, em
comparação com a outra, mais clara na tez e no tom do cabelo, que
insinuamos e propomos, contra as arrasadoras evidências de um decote
profundo e de um peito que se exibe, ser ela a Madalena. Outra prova,
esta fortíssima, robustece e afirma a identificação, e vem a ser que a
dita mulher, ainda que um pouco amparando, com distraída mão, a
extenuada mãe de Jesus, levanta, sim, para o alto o olhar, e este olhar,
que é de autêntico e arrebatado amor, ascende com tal força que parece
levar consigo o corpo todo, todo o seu ser carnal, como uma irradiante
auréola capaz de fazer empalidecer o halo que já lhe está rodeando a
cabeça e reduzindo pensamentos e emoções. Apenas uma mulher que tivesse
amado tanto quanto imaginamos que Maria Madalena amou poderia olhar
desta maneira, com o que, derradeiramente, fica feita a prova de ser ela
esta, só esta, e nenhuma outra, excluída portanto a que ao lado se
encontra, Maria quarta, de pé, meio levantadas as mãos, em piedosa
demonstração, mas de olhar vago, fazendo companhia, neste lado da
gravura, a um homem novo, pouco mais que adolescente, que de modo
amaneirado a perna esquerda flecte, assim, pelo joelho, enquanto a mão
direita, aberta, exibe, numa atitude afectada e teatral, o grupo de
mulheres a quem coube representar, no chão, a acção dramática. Este
personagem, tão novinho, com o seu cabelo aos cachos e o lábio trémulo, é
João. Tal como José de Arimateia, também esconde com o corpo o pé desta
outra árvore que, lá em cima, no lugar dos ninhos, levanta ao ar um
segundo homem nu, atado e pregado como o primeiro, mas este é de cabelos
lisos, deixa pender a cabeça para olhar, se ainda pode, o chão, e a sua
cara, magra e esquálida, dá pena, ao contrário do ladrão do outro lado,
que mesmo no transe final, de sofrimento agónico, ainda tem valor para
mostrar-nos um rosto que facilmente imaginamos rubicundo, corria-lhe bem
a vida quando roubava, não obstante a falta que fazem as cores aqui.
Magro, de cabelos lisos, de cabeça caída para a terra que o há-de comer,
duas vezes condenado, à morte e ao inferno, este mísero despojo só pode
ser o Mau Ladrão, rectíssimo homem afinal, a quem sobrou consciência
para não fingir acreditar, a coberto de leis divinas e humanas, que um
minuto de arrependimento basta para resgatar uma vida inteira de maldade
ou uma simples hora de fraqueza. Por cima dele, também chorando e
clamando como o sol que em frente está, vemos a lua em figura de mulher,
com uma incongruente argola a enfeitar-lhe a orelha, licença que nenhum
artista ou poeta se terá permitido antes e é duvidoso que se tenha
permitido depois, apesar do exemplo. Este sol e esta lua iluminam por
igual a terra, mas a luz ambiente é circular, sem sombras, por isso pode
ser tão nitidamente visto o que está no horizonte, ao fundo, torres e
muralhas, uma ponte levadiça sobre um fosso onde brilha água, umas
empenas góticas, e lá por trás, no testo duma última colina, as asas
paradas de um moinho. Cá mais perto, pela ilusão da perspectiva, quatro
cavaleiros de elmo, lança e armadura fazem voltear as montadas em
alardes de alta escola, mas os seus gestos sugerem que chegaram ao fim
da exibição, estão saudando, por assim dizer, um público invisível. A
mesma impressão de final de festa é dada por aquele soldado de
infantaria que já dá um passo para retirar-se, levando, suspenso da mão
direita, o que, a esta distância, parece um pano, mas que também pode
ser manto ou túnica, enquanto dois outros militares dão sinais de
imtação e despeito, se é possível, de tão longe, decifrar nos minúsculos
rostos um sentimento, como de quem jogou e perdeu. Por cima destas
vulgaridades de milícia e de cidade muralhada pairam quatro anjos, sendo
dois dos de corpo inteiro, que choram, e protestam, e se lastimam, não
assim um deles, de perfil grave, absorto no trabalho de recolher numa
taça, até à última gota, o jorro de sangue que sai do lado direito do
Crucificado. Neste lugar, a que chamam Gólgota, muitos são os que
tiveram o mesmo destino fatal e outros muitos o virão a ter, mas este
homem, nu, cravado de pés e mãos numa cruz, filho de José e de Maria,
Jesus de seu nome, é o único a quem o futuro concederá a honra da
maiúscula inicial, os mais nunca passarão de crucificados menores. É
ele, finalmente, este para quem apenas olham José de Arimateia e Maria
Madalena, este que faz chorar o sol e a lua, este que ainda agora louvou
o Bom Ladrão e desprezou o Mau, por não compreender que não há nenhuma
diferença entre um e outro, ou, se diferença há, não é essa, pois o Bem e
o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do
outro. Tem por cima da cabeça, resplandecente de mil raios, mais do que,
juntos, o sol e a lua, um cartaz escrito em romanas letras que o
proclamam Rei dos Judeus, e, cingindo-a, uma dolorosa coroa de espinhos,
como a levam, e não sabem, mesmo quando não sangram para fora do corpo,
aqueles homens a quem não se permite que sejam reis em suas próprias
pessoas. Não goza Jesus de um descanso para os pés, como o têm os
ladrões, todo o peso do seu corpo estaria suspenso das mãos pregadas no
madeiro se não fosse restar-lhe ainda alguma vida, a bastante para o
manter erecto sobre os joelhos retesados, mas que cedo se lhe acabará, a
vida, continuando o sangue a saltar-lhe da ferida do peito, como já foi
dito. Entre as duas cunhas que firmam a cruz a prumo, como ela
introduzidas numa escura fenda do chão, ferida da terra não mais
incurável que qualquer sepultura de homem, está um crânio, e também uma
tíbia e uma omoplata, mas o crânio é que nos importa, porque é isso o
que Gólgota significa, crânio, não parece ser uma palavra o mesmo que a
outra, mas alguma diferença lhes notaríamos se em vez de escrever crânio
e Gólgota escrevêssemos gólgota e Crânio. Não se sabe quem aqui pôs
estes restos e com que fim o teria feito, se é apenas um irónico e
macabro aviso aos infelizes supliciados sobre o seu estado futuro, antes
de se tornarem em terra, pó e coisa nenhuma. Mas também há quem afirme
que este é o próprio crânio de Adão, subido do negrume profundo das
camadas geológicas arcaicas, e agora, porque a elas não pode voltar,
condenado eternamente a ter diante dos olhos a terra, seu único paraíso
possível e para sempre perdido. Lá atrás, no mesmo campo onde os
cavaleiros executam um último volteio, um homem afasta-se, virando ainda
a cabeça para este lado. Leva na mão esquerda um balde e uma cana na
mão direita. Na extremidade da cana deve haver uma esponja, é difícil
ver daqui, e o balde, quase apostaríamos, contém água com vinagre. Este
homem, um dia, e depois para sempre, será vítima de uma calúnia, a de,
por malícia ou escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao pedir ele água,
quando o certo foi ter-lhe dado da mistura que traz, vinagre e água,
refresco dos mais soberanos para matar a sede, como ao tempo se sabia e
praticava. Vai-se embora, não fica até ao fim, fez o que podia para
aliviar as securas mortais dos três condenados, e não fez diferença
entre Jesus e os Ladrões, pela simples razão de que tudo isto são coisas
da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a única história
possível.