sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Snoopy



Minduim Charles

By Charles M. Schulz

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Arte pela arte

O sol mostra-se num dos cantos superiores do rectângulo, o que se encontra à esquerda de quem olha, representando, o astro-rei, uma cabeça de homem donde jorram raios de aguda luz e sinuosas labaredas, tal uma rosa-dos-ventos indecisa sobre a direcção dos lugares para onde quer apontar, e essa cabeça tem um rosto que chora, crispado de uma dor que não remite, lançando pela boca aberta um grito que não poderemos ouvir, pois nenhuma destas coisas é real, o que temos diante de nós é papel e tinta, mais nada. Por baixo do sol vemos um homem nu atado a um tronco de árvore, cingidos os rins por um pano que lhe cobre as partes a que chamamos pudendas ou vergonhosas, e os pés tem-nos assentes no que resta de um ramo lateral cortado, porém, por maior firmeza, para que não resvalem desse suporte natural, dois pregos os mantêm, cravados fundo. Pela expressão da cara, que é de inspirado sofrimento, e pela direcção do olhar, erguido para o alto, deve de ser o Bom Ladrão. O cabelo, todo aos caracóis, é outro indício que não engana, sabendo-se que anjos e arcanjos assim o usam, e o criminoso arrependido, pelas mostras, já está no caminho de ascender ao mundo das celestiais criaturas. Não será possível averiguar se este tronco ainda é uma árvore, apenas adaptada, por mutilação selectiva, a instrumento de suplício, mas continuando a alimentar-se da terra pelas raízes, porquanto toda a parte inferior dela está tapada por um homem de barba comprida, vestido de ricas, folgadas e abundantes roupas, que, tendo embora levantada a cabeça, não é para o céu que olha. Esta postura solene, este triste semblante, só podem ser de José de Arimateia, que Simão de Cirene, sem dúvida outra hipótese possível, após o trabalho a que o tinham forçado, ajudando o condenado no transporte do patíbulo, conforme os protocolos destas execuções, fora à sua vida, muito mais preocupado com as consequências do atraso para um negócio que trazia aprazado do que com as mortais aflições do infeliz que iam crucificar. Ora, este José de Arimateia é aquele bondoso e abastado homem que ofereceu os préstimos de um túmulo seu para nele ser depositado o corpo principal, mas a generosidade não lhe servirá de muito na hora das santificações, sequer das beatificações, pois não tem, a envolver-lhe a cabeça, mais do que o turbante com que sai à rua todos os dias, ao contrário desta mulher que aqui vemos em plano próximo, de cabelos -soltos sobre o dorso curvo e dobrado, mas toucada com a glória suprema duma auréola, no seu caso recortada como um bordado doméstico. De certeza que a mulher ajoelhada se chama Maria, pois de antemão sabíamos que todas quantas aqui vieram juntar-se usam esse nome, apenas uma delas, por ser ademais Madalena, se distingue onomasticamente das outras, ora, qualquer observador, se conhecedor bastante dos factos elementares da vida, jurará, à primeira vista, que a mencionada Madalena é esta precisamente, porquanto só uma pessoa como ela, de dissoluto passado, teria ousado apresentar-se, na hora trágica, com um decote tão aberto, e um corpete de tal maneira justo que lhe faz subir e altear a redondez dos seios, razão por que, inevitavelmente, está atraindo e retendo a mirada sôfrega dos homens que passam, com grave dano das almas, assim arrastadas à perdição pelo infame corpo. É, porém, de compungida tristeza a expressão do seu rosto, e o abandono do corpo não exprime senão a dor de uma alma, é certo que escondida por carnes tentadoras, mas que é nosso dever ter em conta, falamos da alma, claro está, esta mulher poderia até estar inteiramente nua, se em tal preparo tivessem escolhido representá-la, que ainda assim haveríamos de demonstrar-lhe respeito e homenagem. Maria Madalena, se ela é, ampara, e parece que vai beijar, num gesto de compaixão intraduzível por palavras, a mão doutra mulher, esta sim, caída por terra, como desamparada de forças ou ferida de morte. O seu nome também é Maria, segunda na ordem de apresentação, mas, sem dúvida, primeiríssima na importância, se algo significa o lugar central que ocupa na região inferior da composição. Tirando o rosto lacrimoso e as mãos desfalecidas, nada se lhe alcança a ver do corpo, coberto pelas pregas múltiplas do manto e da túnica, cingida na cintura por um cordão cuja aspereza se adivinha. É mais idosa do que a outra Maria, e esta é uma boa razão, provavelmente, mas não a única, para que a sua auréola tenha um desenho mais complexo, assim, pelo menos, se acharia autorizado a pensar quem, não dispondo de informações precisas acerca das precedências, patentes e hierarquias em vigor neste mundo, estivesse obrigado a formular uma opinião. Porém, tendo em conta o grau de divulgação, operada por artes maiores e menores, destas iconografias, só um habitante doutro planeta, supondo que nele não se houvesse repetido alguma vez, ou mesmo estreado, este drama, só esse em verdade inimaginável ser ignoraria que a afligida mulher é a viúva de um carpinteiro chamado José e mãe de numerosos filhos e filhas, embora só um deles, por imperativos do destino ou de quem o governa, tenha vindo a prosperar, em vida mediocremente, mas maiormente depois da morte. Reclinada sobre o seu lado esquerdo, Maria, mãe de Jesus, esse mesmo a quem acabamos de aludir, apoia o antebraço na coxa de uma outra mulher, também ajoelhada, também Maria de seu nome, e afinal, apesar de não lhe podermos ver nem fantasiar o decote, talvez verdadeira Madalena. Tal como a primeira desta trindade de mulheres, mostra os longos cabelos soltos, caídos pelas costas, mas estes têm todo o ar de serem louros, se não foi pura casualidade a diferença do traço, mais leve neste caso e deixando espaços vazios no sentido das madeixas, o que, obviamente, serviu ao gravador para aclarar o tom geral da cabeleira representada. Com tais razões não pretendemos afirmar que Maria Madalena tivesse sido, de facto, loura, apenas nos estamos conformando com a corrente de opinião maioritária que insiste em ver nas louras, tanto as de natureza como as de tinta, os mais eficazes instrumentos de pecado e perdição. Tendo sido Maria Madalena, como é geralmente sabido, tão pecadora mulher, perdida como as que mais o foram, teria também de ser loura para não desmentir as convicções, em bem e em mal adquiridas, de metade do género humano. Não é, porém, por parecer esta terceira Maria, em comparação com a outra, mais clara na tez e no tom do cabelo, que insinuamos e propomos, contra as arrasadoras evidências de um decote profundo e de um peito que se exibe, ser ela a Madalena. Outra prova, esta fortíssima, robustece e afirma a identificação, e vem a ser que a dita mulher, ainda que um pouco amparando, com distraída mão, a extenuada mãe de Jesus, levanta, sim, para o alto o olhar, e este olhar, que é de autêntico e arrebatado amor, ascende com tal força que parece levar consigo o corpo todo, todo o seu ser carnal, como uma irradiante auréola capaz de fazer empalidecer o halo que já lhe está rodeando a cabeça e reduzindo pensamentos e emoções. Apenas uma mulher que tivesse amado tanto quanto imaginamos que Maria Madalena amou poderia olhar desta maneira, com o que, derradeiramente, fica feita a prova de ser ela esta, só esta, e nenhuma outra, excluída portanto a que ao lado se encontra, Maria quarta, de pé, meio levantadas as mãos, em piedosa demonstração, mas de olhar vago, fazendo companhia, neste lado da gravura, a um homem novo, pouco mais que adolescente, que de modo amaneirado a perna esquerda flecte, assim, pelo joelho, enquanto a mão direita, aberta, exibe, numa atitude afectada e teatral, o grupo de mulheres a quem coube representar, no chão, a acção dramática. Este personagem, tão novinho, com o seu cabelo aos cachos e o lábio trémulo, é João. Tal como José de Arimateia, também esconde com o corpo o pé desta outra árvore que, lá em cima, no lugar dos ninhos, levanta ao ar um segundo homem nu, atado e pregado como o primeiro, mas este é de cabelos lisos, deixa pender a cabeça para olhar, se ainda pode, o chão, e a sua cara, magra e esquálida, dá pena, ao contrário do ladrão do outro lado, que mesmo no transe final, de sofrimento agónico, ainda tem valor para mostrar-nos um rosto que facilmente imaginamos rubicundo, corria-lhe bem a vida quando roubava, não obstante a falta que fazem as cores aqui. Magro, de cabelos lisos, de cabeça caída para a terra que o há-de comer, duas vezes condenado, à morte e ao inferno, este mísero despojo só pode ser o Mau Ladrão, rectíssimo homem afinal, a quem sobrou consciência para não fingir acreditar, a coberto de leis divinas e humanas, que um minuto de arrependimento basta para resgatar uma vida inteira de maldade ou uma simples hora de fraqueza. Por cima dele, também chorando e clamando como o sol que em frente está, vemos a lua em figura de mulher, com uma incongruente argola a enfeitar-lhe a orelha, licença que nenhum artista ou poeta se terá permitido antes e é duvidoso que se tenha permitido depois, apesar do exemplo. Este sol e esta lua iluminam por igual a terra, mas a luz ambiente é circular, sem sombras, por isso pode ser tão nitidamente visto o que está no horizonte, ao fundo, torres e muralhas, uma ponte levadiça sobre um fosso onde brilha água, umas empenas góticas, e lá por trás, no testo duma última colina, as asas paradas de um moinho. Cá mais perto, pela ilusão da perspectiva, quatro cavaleiros de elmo, lança e armadura fazem voltear as montadas em alardes de alta escola, mas os seus gestos sugerem que chegaram ao fim da exibição, estão saudando, por assim dizer, um público invisível. A mesma impressão de final de festa é dada por aquele soldado de infantaria que já dá um passo para retirar-se, levando, suspenso da mão direita, o que, a esta distância, parece um pano, mas que também pode ser manto ou túnica, enquanto dois outros militares dão sinais de imtação e despeito, se é possível, de tão longe, decifrar nos minúsculos rostos um sentimento, como de quem jogou e perdeu. Por cima destas vulgaridades de milícia e de cidade muralhada pairam quatro anjos, sendo dois dos de corpo inteiro, que choram, e protestam, e se lastimam, não assim um deles, de perfil grave, absorto no trabalho de recolher numa taça, até à última gota, o jorro de sangue que sai do lado direito do Crucificado. Neste lugar, a que chamam Gólgota, muitos são os que tiveram o mesmo destino fatal e outros muitos o virão a ter, mas este homem, nu, cravado de pés e mãos numa cruz, filho de José e de Maria, Jesus de seu nome, é o único a quem o futuro concederá a honra da maiúscula inicial, os mais nunca passarão de crucificados menores. É ele, finalmente, este para quem apenas olham José de Arimateia e Maria Madalena, este que faz chorar o sol e a lua, este que ainda agora louvou o Bom Ladrão e desprezou o Mau, por não compreender que não há nenhuma diferença entre um e outro, ou, se diferença há, não é essa, pois o Bem e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro. Tem por cima da cabeça, resplandecente de mil raios, mais do que, juntos, o sol e a lua, um cartaz escrito em romanas letras que o proclamam Rei dos Judeus, e, cingindo-a, uma dolorosa coroa de espinhos, como a levam, e não sabem, mesmo quando não sangram para fora do corpo, aqueles homens a quem não se permite que sejam reis em suas próprias pessoas. Não goza Jesus de um descanso para os pés, como o têm os ladrões, todo o peso do seu corpo estaria suspenso das mãos pregadas no madeiro se não fosse restar-lhe ainda alguma vida, a bastante para o manter erecto sobre os joelhos retesados, mas que cedo se lhe acabará, a vida, continuando o sangue a saltar-lhe da ferida do peito, como já foi dito. Entre as duas cunhas que firmam a cruz a prumo, como ela introduzidas numa escura fenda do chão, ferida da terra não mais incurável que qualquer sepultura de homem, está um crânio, e também uma tíbia e uma omoplata, mas o crânio é que nos importa, porque é isso o que Gólgota significa, crânio, não parece ser uma palavra o mesmo que a outra, mas alguma diferença lhes notaríamos se em vez de escrever crânio e Gólgota escrevêssemos gólgota e Crânio. Não se sabe quem aqui pôs estes restos e com que fim o teria feito, se é apenas um irónico e macabro aviso aos infelizes supliciados sobre o seu estado futuro, antes de se tornarem em terra, pó e coisa nenhuma. Mas também há quem afirme que este é o próprio crânio de Adão, subido do negrume profundo das camadas geológicas arcaicas, e agora, porque a elas não pode voltar, condenado eternamente a ter diante dos olhos a terra, seu único paraíso possível e para sempre perdido. Lá atrás, no mesmo campo onde os cavaleiros executam um último volteio, um homem afasta-se, virando ainda a cabeça para este lado. Leva na mão esquerda um balde e uma cana na mão direita. Na extremidade da cana deve haver uma esponja, é difícil ver daqui, e o balde, quase apostaríamos, contém água com vinagre. Este homem, um dia, e depois para sempre, será vítima de uma calúnia, a de, por malícia ou escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao pedir ele água, quando o certo foi ter-lhe dado da mistura que traz, vinagre e água, refresco dos mais soberanos para matar a sede, como ao tempo se sabia e praticava. Vai-se embora, não fica até ao fim, fez o que podia para aliviar as securas mortais dos três condenados, e não fez diferença entre Jesus e os Ladrões, pela simples razão de que tudo isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a única história possível.

José Saramago (1922 - 2010)
In: O Evangelho segundo Jesus Cristo

(Clique AQUI para conferir a obra de arte descrita pelo autor, e AQUI para baixar o livro)

terça-feira, 13 de novembro de 2018

O FIM DE UMA ERA

Lenda das HQs

Lenda das HQs, Stan Lee, cocriador dos principais super-heróis da Marvel Comics, morre ao 95 anos

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 Foto: Getty



O escritor, editor e executivo da indústria de quadrinhos Stan Lee morreu nesta segunda-feira, 12, aos 95 anos. A causa da morte não foi divulgada, mas ele foi levado ao hospital Cedars-Sinai, em Los Angeles, onde morreu. Em parceria com quadrinistas como Jack Kirby e Steve Ditko, o americano Stan Lee foi criador de alguns dos principais super-heróis da Marvel, uma das duas grandes casas editoriais do gênero. Entre suas contribuições mais conhecidas, estão o Homem de Ferro, o Quarteto Fantástico e os XMen. Ele morreu pouco mais de um ano após sua mulher, Joan Lee, e alguns meses depois de Steve Ditko, seu parceiro na concepção do Homem-Aranha.

Stan Lee fazia curtas e bemhumoradas aparições em todas as adaptações cinematográficas de seus quadrinhos, portanto, os fãs do autor ainda podem esperar imagens inéditas dele em Capitã Marvel e no quarto filme dos Vingadores, ambos com estreias previstas para 2019.

Nova-iorquino, nascido Stanley Martin Lieber, em 1922, ele foi um dos mais importantes nomes dos quadrinhos por décadas, mas não foi exatamente um quadrinista. Fez história principalmente no nicho dos super-heróis ao escrever argumentos, roteirizar HQs e conceber personagens e cenários. No entanto, Lee começou a carreira em 1939, como um mero assistente, sem assumir funções criativas.

Uma de suas primeiras criações foi o Destroyer (não confundir com o Demolidor, que também foi imaginado por Lee em parceria com Bill Everett), em 1941, mas o herói não obteve o sucesso de suas futuras contribuições. Suas principais obras vieram com a renovação dos quadrinhos nos anos 1950 e 1960, justamente quando Stan Lee estava pensando em mudar de carreira e sua mulher sugeriu que ele contasse as histórias que queria, independentemente de serem adequadas ou não às fórmulas de super-heróis. Esse conselho coincidiu com a intenção da Marvel de renovar seu rol de personagens.

Embora não tenha efetivamente lutado, Stan Lee serviu o exército durante a 2.ª Guerra Mundial (1939-1945), e retornou às atividades nos quadrinhos após cumprir as obrigações militares. A função de Stan Lee, intitulada “playwright” (algo como “roteirista”), consistia em escrever e adaptar textos, e foi compartilhada no exército americano por pouquíssimos nomes, como o dramaturgo William Saroyan, o cineasta italiano Frank Capra e o também cartunista Theodore Geisel.

Por mais que sua contribuição com os quadrinhos de super-heróis tenha sido voltada quase exclusivamente à Marvel, Stan Lee figura nas páginas de algumas HQs da empresa rival, a DC Comics. Quando seu parceiro de longa data, Jack Kirby, trabalhou na DC, ele criou Funky Flashman, personagem secundário de Mister Miracle (1972). Sem poderes sobre-humanos ou qualquer passado, Funky foi tido por muitos como uma sátira de Stan Lee, embora essa informação não seja canônica.

Lee ajudou o gênero de super-heróis a se reerguer após um período fraco. Os quadrinhos chegaram a ser extremamente políticos no início dos anos 1940 – Superman enfrentou Hitler antes mesmo de os Estados Unidos entrarem na 2.ª Guerra e o Capitão América surgiu como uma resposta patriótica americana à ascensão do nazismo. Mas, com a crescente censura imposta pelo código de conduta da Comics Code Authority, formada em 1954, aliada a um momento de crise nas vendas, os super-heróis perderam relevância.

Foi com o surgimento do Quarteto Fantástico, primeira colaboração de Stan Lee e Jack Kirby, em 1961, que o estilo ganhou uma lufada de ar fresco, dando início a uma nova era de ouro capitaneada por ele. A reboque do sucesso, a Marvel deu carta branca para Lee conceber histórias e personagens que hoje são clássicos, como o Homem-Aranha, Thor e Doutor Estranho.

Nos anos 1960, Stan Lee não apenas criou heróis que permaneceram no imaginário coletivo, mas foi um dos grandes responsáveis por um maior engajamento no gênero. Ao mesmo tempo que os X-Men refletiam a discussão pelos direitos civis dos negros em voga nos EUA – o conflito entre Professor Xavier e Magneto tem paralelos evidentes com as disputas entre Martin Luther King Jr. e Malcolm X –, a superequipe também foi uma metáfora da luta LGBT: os mutantes tinham poderes, mas precisavam ocultálos de uma sociedade preconceituosa que os reprimia.

O Pantera Negra, criado antes mesmo do partido homônimo, também foi um herói que abriu as portas para a representatividade e a discussão sobre racismo nos quadrinhos. Já o Demolidor foi o primeiro super-herói a possuir uma deficiência, e usava sua cegueira não como um problema, mas como uma vantagem, dando um excelente exemplo de empoderamento social.

A variedade temática que as histórias dele abarcaram é enorme: desde o misticismo oriental do Doutor Estranho à mitologia nórdica de Thor, passando pela ode à ficção científica de Hulk, um misto de Frankenstein com O Médico e o Monstro. Não por acaso foi o grande maestro da orquestra cósmica que a Marvel criou com seu universo compartilhado, e que agora é replicada com sucesso nos cinemas. Stan Lee é certamente um dos responsáveis pelo atual momento da cultura pop, e sua marca permanecerá gravada no mundo nerd por anos a fio.

André Cáceres, in "O Estado de S. Paulo"


 REPERCUSSÃO:

"Durante décadas, ele ofereceu para jovens e velhos aventuras, escapismo, conforto, confiança, inspiração, força, amizade e alegria” Chris Evans - ATOR
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“Sem Stan, uma era realmente chega ao fim” Neil Gaiman- ESCRITOR
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“Ele foi um titã da criatividade. Deu início à era das HQs da Marvel e à era dos filmes de super-heróis que vivemos hoje” Rob Liefeld- QUADRINISTA
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“Ninguém exerceu mais impacto sobre minha carreira e tudo o que fazemos no Marvel Studios do que Stan Lee. Stan deixa um legado que sobreviverá a todos nós” Kevin Feige- PRODUTOR
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“Ele tinha o poder de inspirar, entreter e conectar” Bob Iger- CEO DA DISNEY

 

CRONOLOGIA

1961 Quarteto Fantástico
Primeira colaboração entre Stan Lee e o ilustrador Jack Kirby, abriu as portas para um renascimento dos quadrinhos de heróis

1962 Homem-Aranha
Seu personagem mais popular, criado em parceria com Steve Ditko, demonstrou o drama de conciliar vida pública e privada

1963 X-Men
Conflito entre Professor X e Magneto é paralelo entre as perspectivas de Martin Luther King e Malcolm X

1964 Demolidor
Concebido por Lee com Bill Everett, foi o primeiro herói deficiente e usou a sua cegueira como uma vantagem

1966 Pantera Negra
Criado antes do partido, de mesmo nome, virou ícone de representatividade e da luta antirracista nas HQs


segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Stan "Excelsior!" Lee (1922-2018)


Arte: Olivier Coipel

Projeto Sirius: ‘Maracanã da pesquisa’


Máquina construída em Campinas será uma das fontes de luz síncrotron mais poderosas do mundo   

 Sirius
                 
O Sirius é um acelerador de elétrons, usado para produzir luz síncrotron. Funciona como um grande microscópio, que permite estudar praticamente qualquer material. 



CAMPINAS -  Por fora, parece um disco voador, do tamanho do estádio do Maracanã. Por dentro, a sensação é de estar caminhando em outro mundo, na fronteira da tecnologia, cercado de inovação por todos os lados. E o mais incrível: quase tudo feito por aqui mesmo, projetado por cientistas brasileiros, desenvolvido por empresas nacionais e construído – a muito custo – no período de maior aperto financeiro da ciência nacional.

Assim é o Sirius, a nova fonte de luz síncrotron do Brasil, que está próxima de entrar em operação no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas. Orçado em R$ 1,8 bilhão, é o projeto mais grandioso e tecnologicamente complexo da ciência brasileira.
O prédio, de 15 metros de altura e 68 mil metros quadrados, será inaugurado oficialmente nesta quarta-feira pelo presidente Michel Temer e o ministro de Ciência e Tecnologia, Gilberto Kassab.

A máquina propriamente dita – um acelerador de elétrons com mais de 500 metros de circunferência, que produz a luz síncrotron – está em fase final de montagem, e deve entrar em operação no segundo semestre de 2019. Com ela, cientistas poderão fazer imagens 3D de altíssima resolução e investigar a fundo a estrutura molecular de qualquer tipo de material.

Se o dinheiro não minguar e as milhares de peças que compõem o acelerador funcionarem com a precisão nanométrica necessária, o Sirius será uma das fontes de luz síncrotron mais poderosas do mundo, num país onde os investimentos em ciência só caíram nos últimos anos.

“Resiliência é o nome do jogo”, diz o físico Antônio José Roque da Silva, que pilota o projeto desde 2009, inicialmente como diretor do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) e agora, como diretor-geral do CNPEM.

Não foram poucos os momentos em que o projeto esteve ameaçado pela falta de recursos. A construção começou em 2015, em meio à explosão da crise econômica nacional.

A salvação, segundo Silva, foi a inclusão do Sirius no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a partir de 2016, o que deu ao projeto um status diferenciado dentro da estrutura política e administrativa do governo federal. “Foi o que nos permitiu sobreviver, mesmo com todas as dificuldades.”

Made in Brazil.  A concepção do projeto começou em 2009, quando ficou claro que a atual fonte de luz síncrotron do LNLS – chamada UVX, de 1997 – estava tecnologicamente defasada, apesar de funcionar muito bem e até hoje atender mais de 1 mil pesquisadores por ano.

Inicialmente, seria uma máquina de terceira geração, como tantas outras que estavam sendo construídas no mundo. Em 2012, porém, um comitê recomendou que fosse feito um “upgrade”, para uma máquina de quarta geração – coisa que ainda não existia no mundo. E o desafio foi aceito.

“Em vez de começar atrás, era a oportunidade de sair na frente”, lembra Silva. Muitos disseram que era impossível, mas o projeto foi em frente. “Reprojetamos tudo, e o Sirius ganhou destaque mundial. Todo mundo começou a desenhar novas máquinas com base na nossa tecnologia.”

Cerca de 85% do projeto está sendo contratado dentro do Brasil, incluindo o desenvolvimento e a fabricação das peças mais sofisticada do acelerador e das estações experimentais, chamadas de “linhas de luz”.

O primeiro feixe de elétrons foi gerado em maio, no aparelho conhecido como Linac, que agora está sendo conectado ao primeiro anel de aceleração, conhecido como Booster.

O anel principal, de onde são extraídos os feixes de luz síncrotron, está em fase inicial de montagem, com conclusão prevista para abril ou maio. Terá início, então, uma longa fase de testes, até que o Sirius possa ser aberto para uso da comunidade científica. Nessa primeira fase, estão previstas seis linhas de luz, com mais sete planejadas para 2021. Mas o prédio foi construído para abrigar até 40.

“É uma máquina que será competitiva por muitos anos”, diz o diretor científico do LNLS, Harry Westfahl Junior.


 


Luz vai permitir investigar estrutura interna de materiais

A complexidade tecnológica de uma fonte de luz síncrotron como o Sirius é imensa. De uma forma geral, porém, essas máquinas podem ser pensadas como grandes microscópios, ou tomógrafos, que os cientistas utilizam para fazer imagens, enxergar a estrutura molecular e estudar as propriedades de materiais.

Pode ser uma proteína, uma célula, um osso, um grão de areia, uma planta, uma rocha, um plástico, uma liga metálica ou um fóssil. Qualquer coisa.

Além da pesquisa acadêmica, a técnica é muito usada pelas indústrias químicas, de petróleo, fármacos e cosméticos.

A física Nathaly Archilha, pesquisadora do CNPEM, por exemplo, utiliza a luz síncrotron para estudar as propriedades de rochas que formam reservatórios de petróleo e gás natural. “Entender essa estrutura é fundamental para otimizar os processos de extração do óleo”, explica.

Com a luz síncrotron do UVX, já é possível enxergar a malha porosa interna das rochas, onde fica estocado o óleo – com o diâmetro de alguns fios de cabelo. Já com o Sirius, será possível fazer uma tomografia 4D dessas amostras, visualizando em tempo real, e condições reais de temperatura e pressão, como o óleo flui por dentro desses poros.

Além disso, o tamanho das amostras poderá ser muito maior, e o tempo de imageamento será muito menor. Uma imagem que leva horas para ser feita no UVX poderá ser feita em segundos no Sirius.


Herton Escobar, O Estado de S.Paulo

domingo, 11 de novembro de 2018

Patrimônio nacional






As modelos brasileiras Lais Ribeiro (acima) e Adriana Lima (abaixo, despedindo-se como "Angel") em desfile na Victoria's Secret Fashion Show em Nova York.




Fotos: Timothy A. Clary / AFP

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

domingo, 4 de novembro de 2018

Crônica


“Na cabeça de alguém sóbrio até poderia passar ileso, mas um ébrio jamais deixaria de achar um grande mistério”



Teste de gravidez
 RUTH MANUS*


Chegou em casa meio embriagada. Nada preocupante, apenas trilili. Colocou o pijama, chutou os sapatos do meio do caminho. Lembrou-se de tirar a maquiagem – coisa que jamais aconteceria aos 18, mas que aos quase 30 começa a tornar-se imperiosa. Ao jogar o algodão no lixo, viu o elemento. Coisa estranha, uma caixa de remédios amassada, torcida, como se quisesse esconder sua própria face. Algo que, na cabeça de alguém sóbrio até poderia passar ileso, mas que um ébrio jamais deixaria de achar um grande mistério.

Não teve dúvidas. Enfiou o braço no lixo e pegou a caixa. Desamassou-a, com algum esforço. Seus olhos se arregalaram, sua boca se abriu e sua garganta puxou o ar, emitindo aquele ruído de profunda surpresa. Era um teste de gravidez. Ficou confusa. Quem? Quando? Como assim? Levou a mão ao queixo, como uma aprendiz de Sherlock Holmes. Quais as mulheres que haviam passado por aquele banheiro? Sua mãe, de 68 anos. A empregada, de 74. Sua sobrinha de 2 anos. Sua outra sobrinha de 13 – NEM BRINCA. E, sim, sua irmã, de 34, mãe da pequena de 2. Faz sentido. Meio bêbada, porém ainda sagaz.

Pegou o celular, tirou uma foto da caixa e mandou para a irmã, com a carinhosa legenda “mano, que merda é essa?”. Eram 2 da manhã. Foi para a cama confusa. Será? Outro sobrinho, já? Que delícia. Só faço a parte do entretenimento mesmo. Adormeceu, mas algumas horas depois acordou pensando: se a caixa estava lá, o teste também deve estar. Levantou-se apressada, sentou-se no chão do banheiro e começou a cavocar o lixo. Não sabemos ao certo se a culpa era do álcool ou do amor de irmã. Até que encontrou e lá estavam elas, evidentes: duas tirinhas cor de rosa. Positivo. Tentou ligar para a irmã, que nem acordou com o toque do celular. 5 da manhã e ela já não conseguia dormir.

Eram mais de 10 quando a irmã ligou e disse que não se conformava que ela tivesse vasculhado o lixo. “Parece que não me conhece, sou assim desde sempre”. A irmã disse que, mesmo com o resultado positivo, não estava assim tão certa. Queria fazer mais um teste “o digital, sabe? Que mostra de quantas semanas você está grávida.”. Ela não sabia, mas disse que compraria na farmácia antes de irem para o jantar de aniversário do pai delas.

Chegaram ao restaurante alemão. Na mesa: os pais, a avó, tios, um primo, a pequena de 2 anos e os seus dois maridos. Faltou o irmão. Paciência. Dez minutos depois da chegada, ela piscava para a irmã e apontava para o banheiro. Sussurrava “vamos, vamos logo, comprei essa porcaria e você ainda fica me enrolando?”. Foram. Ela pediu um copo de plástico para o garçom, que prontamente a atendeu, perguntando: deseja gelo? Não, não precisa. Apesar de não beber whisky, detestou imaginar um copo de xixi com pedras de gelo boiando. A irmã fez o teste. Aqueles segundo de espera até sair o resultado são mesmo tão angustiantes quanto os minutos de espera por uma porção de fritas que demora. Mas pronto: confirmado. Mais um bebê. Abraço longo.

“Olha, vou enrolar o resultado em papel e dar de aniversário pro pai”. Jura? “Ah, já que vou contar que estou grávida, pelo menos aproveito o mistério”. Voltaram para a mesa. A irmã teve a sensatez de avisar seu marido antes. Depois, entregou o rolo de papel ao pai, que abriu e, para surpresa de ambas, deu um sorriso amarelo e disse: ah, legal, obrigada. Estranharam. A mãe perguntou o que era e ele respondeu: um termômetro. Caíram na gargalhada. “Não é um termômetro. Tô grávida de novo.” E aí a família toda gritou e chorou, foi aquela cafonice afetuosa.

Nove meses se passaram. Aquela bebê já avisou que seu negócio é chegar chegando. Vem Pipa, tá na hora. A tia está te esperando com mais alegria e ansiedade do que quando espera batata frita. Vem, querida, estamos doidos para te conhecer.


 (*) Escreve aos domingos, em "O Estado de S. Paulo"

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Especialistas veem Moro sob suspeição para julgar Lula


Juiz Sérgio Moro aceitou o convite para assumir o Ministério da Justiça no Governo Bolsonaro
Heuler Andrey / AFP




O simples encontro do juiz federal Sergio Moro com o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), já o coloca sob suspeição para continuar julgando processos do ex-presidente Lula, segundo advogados ouvidos pela reportagem. Uma reunião de Bolsonaro com Moro ocorreu nesta quinta-feira (1º) para discutirem a ida do juiz para o Ministério da Justiça. Pouco após o encontro, o magistrado anunciou ter aceitado a missão.

Moro marcou uma audiência para interrogar Lula no dia 14 de novembro no caso do sítio de Atibaia, no qual o presidente é acusado de ter recebido propina da Odebrecht, da OAS e do pecuarista José Carlos Bumlai em forma de obras no imóvel. O juiz também deve julgar no próximo mês a ação penal na qual o ex-presidente é apontado como beneficiário de suborno da Odebrecht na compra de um imóvel em São Paulo que seria destinado ao Instituto Lula.

Suspeição ocorre num processo quando um juiz deixa de ser imparcial, ou seja, quando adota uma postura que compromete a sua isenção para ponderar uma decisão.

O advogado Andrei Zanker Schmitt, professor de processo penal da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Porto Alegre, diz que Moro precisa se afastar já dos casos envolvendo Lula.

"A atuação de um juiz não pode ser pautada por interesses pessoais. Um juiz que confessa possuir aspiração política colidente com casos a ele submetidos não pode julgá-los, sob pena de colocar em dúvida a imparcialidade de sua atuação", afirma. "Suspeição significa suspeita. O cheiro de parcialidade já é motivo para o afastamento de um juiz".

Juliano Breda, advogado que atua na Lava Jato e preside a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) no Paraná, diz que a posição de Moro de que pensaria no convite de Bolsonaro já denota suspeição. "A declaração evidencia uma aproximação político-partidária incompatível para a isenção que se espera de um magistrado que, neste caso, julgaria o ex-adversário político do presidente eleito", afirma.

Segundo Breda, pela lei brasileira é "praticamente impossível" comprovar a quebra de isenção do juiz. O Código de Processo Penal prevê que o juiz se declare suspeito "se for amigo íntimo ou inimigo capital", se for "cônjuge, ascendente ou descendente", "se for credor ou devedor" ou sócio de algum réu do processo.

Mas ele não vê essa dificuldade no caso da decisão de Moro de se encontrar com Bolsonaro: "Parece ser claro que houve perda total de imparcialidade com a cogitação pública de exercer um dos principais cargo de confiança de quem chegou a pregar a eliminação dos 'petralhas'".

O criminalista Alberto Toron diz que o encontro com Bolsonaro implica perda da imparcialidade por conta da oposição e confrontos entre Bolsonaro e Lula – o presidente eleito disse que Lula deveria apodrecer na prisão. "Se ele é partidário do Bolsonaro, há uma antinomia em relação a Lula", afirma.

O encontro com Bolsonaro, segundo Toron, precisa ser somado a um histórico de fatos polêmicos do juiz em relação ao ex-presidente, entre os quais ele inclui a divulgação de conversas telefônicas de Lula quando a então presidente, Dilma Rousseff, cogitava nomeá-lo ministro, em 2016, e da delação de Antonio Palocci àss vésperas do primeiro turno das eleições.

Há visões discordantes sobre a eventual perda da imparcialidade do juiz. O advogado Thiago Bottino, coordenador do curso de direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, diz não ver problemas no convite. "De todas as situações em que o juiz se manifestou politicamente, falando fora dos autos, comentando casos, dizer que vai pensar no convite é o menos problemático do ponto de vista da imparcialidade".

A parcialidade, de acordo com Bottino, precisa ser analisada a partir de atos nos processos que tiveram um viés contra o ex-presidente, como a divulgação das conversas de Lula em 2016 e da delação de Palocci. Nesses casos, afirma, Moro foi parcial.

O juiz Moro diz que só comenta questões dos processos que julga nos autos.


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