A família estava almoçando. Eram doze pessoas numa pequena casa. Pai e mãe estavam taciturnos. Os filhos, sempre correndo, passariam poucos minutos em casa, antes de voltar correndo para o trabalho.
Então, no quintal, ouvem um alvoroço. A princípio, não souberam bem do que se tratava. Depois, ouviram o latido grave do cachorro. As galinhas, assustadas, cacarejavam. A matriarca, lacônica: “É aquele cachorro de novo”. Voltou a comer. Nem um minuto se passou e o fuzuê começou de novo no quintal. A matriarca, lacônica: “João, vai lá e dá um jeito naquele cachorro”.
João, calmamente, silenciosamente, mastigou a comida, engoliu, enfiou mais um bocado na boca e, inexpressivo, caminhou para o quintal. Chamou pelo cachorro, que logo atendeu, indo contente ao encontro do dono, abanando o rabo. Pela coleira, levou o imenso animal até o local em que ele ficava quando amarrado. Prendeu o cão e, inexpressivo, apanhou um pedaço de pau.
Começou a bater no cachorro. Os integrantes da família que estavam em casa lá continuaram. O bicho tentava se safar, mas as pancadas eram impiedosas e cheias de raiva. Quanto mais Rex tentava se safar, mais a raiva de João aumentava, não se importando onde o cachorro era atingido. A boca dele já estava sangrando.
No fundo da casa em que a família mora há uma fabriqueta. O espaço é alugado pela família. Dois dos funcionários da pequena fábrica, alarmados pelo desespero do cachorro, deixaram o trabalho e saíram, para ver o que acontecia. Assim que chegaram ao umbral que dava para fora, puderam ouvir a matriarca, que havia saído de casa e dava ordens: “Isso, João. Capricha. Agora quero ver se ele não aprende a não incomodar mais as galinhas”. O filho caprichava. O cachorro já não mais oferecia muita resistência. Cansado, resfolegando, perdera o ímpeto que tivera quando a surra começou. Aceitava as pancadas, que não cessavam, não mais tentando arrebentar a corda que o prendia. Seguindo o instinto, investira contra o dono, o que só fez com que este, colérico, com mais força batesse.
Os funcionários, vendo o estado em que o cão já estava, pensaram em intervir, certos de que o rapaz acabaria matando o viçoso Rex. Nisso, a mãe, ao ver que mais alguns filhos estavam também saindo de casa para ver o fato, mandou que um deles buscasse um porrete maior, para o qual ela apontara. O menino obedeceu. “Leva pro João”, disse ela. João apanhou o pedaço de pau maior e mais pesado e pareceu dobrar sua força. O cachorro já era só passividade. Os empregados, quando começaram a caminhar, receberam de outro dos irmãos a admoestação: “Para o bem de vocês, voltem pro trabalho”.
Suado, cansado, João tirou a camisa sob um sol de meio-dia que não dava trégua. Jogou no chão o pedaço de pau e passou a chutar Rex, que estava deitado, sangrando, de olhos fechados. “Isso é pra você aprender a não mexer mais com as galinhas. Toma!”. O cachorro não achava forças para se movimentar, mas era sacudido pelos golpes. João o pegou pelo pescoço, começou a enforcá-lo: “Vai mexer mais com as galinhas? Vai?”. Rex, inerte, abriu os olhos. João apanhou um pedaço de pau menor que estava por perto e o enfiou na boca do cachorro, empurrando-o o mais forte que podia pela goela do bicho. Ao deixar livre a boca do cachorro, acomodou as mãos na boca de Rex e começou a abri-la o máximo que conseguiu. Depois, o largou, lavou as mãos e foi comer mais um pouco.
Rex está morto.
By Lívio Soares
In: Anacrônico
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