segunda-feira, 28 de janeiro de 2013
Niterói, 17/12/1961
Foi a trapezista Nena quem deu o alerta. Momentos antes, pendurada na barra de ferro, a quase vinte metros do chão, ela balançava-se confiando apenas em sua habilidade. Aos 39 anos, não se valia do sobrenome. Irmã do dono do circo, poderia ocupar função administrativa ou mais segura. Pouco mais cedo, suspenso de cabeça para baixo no trapézio, preso pelas pernas, seu marido e companheiro de número, Santiago Grotto, tinha dado o comando de partida, em inglês:
— Go!
Ao som do tema de Lara, do filme Doutor Jivago, que fazia muito sucesso na época, Nena, apelido de Antonietta Stevanovich, havia saltado da plataforma e segurado a barra. Após balançar, soltou-se, deu uma volta e meia no ar e foi agarrada pelas pernas por Grotto. Ele lançou-a de novo para o trapézio enquanto outro colega, Vicente Sanches, jogava-se até seus braços. Nena e Sanches se cruzaram no ar. Ele foi amparado por Grotto e ela alcançou a barra. Grotto arremessou Sanches em direção a Nena e os dois voltaram juntos para o alto da plataforma, encerrando o salto cruce, clímax do espetáculo.
Os três trapezistas preparavam-se para receber os aplausos de praxe quando Grotto teve sua atenção desviada para uma luz esverdeada na parte de baixo da lona, à sua direita. Não demorou a entender o que estava acontecendo. Fez sinal em direção aos colegas, pedindo pressa, mas eles também já haviam notado o problema. Grotto imediatamente saltou de costas rumo à rede de segurança e desceu para o chão. Nena pulou em seguida. O marido esperou que a rede parasse de balançar, pegou a mulher pela cintura e botou-a no picadeiro. Ela olhou para o alto, viu que Sanches ainda estava na plataforma e hesitou. “Se eu der o alarme agora, ele morre”, pensou. A trapezista esperou então que ele pulasse para gritar:
— Fogo!
Não lhe passou pela cabeça que as chamas se propagariam tão depressa. Os três saíram pela porta dos fundos, escapando ilesos.
Pouco antes, Semba tinha sido aplaudido por mais de 3 mil espectadores. Agora, também saía fugido do picadeiro. Aos 24 anos, sempre tivera um comportamento previsível. Evitava gestos bruscos, pois sabia que a punição lhe doía no couro. Preferia movimentos estudados, porque assim lhe fora ensinado. Como todo mundo no circo, ele havia acabado de ouvir o grito de fogo. O corre-corre do público provocou-lhe inquietação, a gritaria da multidão deixou-o irrequieto, mas somente quando um pedaço de lona queimada o atingiu ele percebeu que chegara a hora de deixar a prudência de lado e debandar. Sua escapada seria comentada anos à frente. Ele seria olhado com um misto de respeito e temor, admiração e cólera. Herói para uns, porque abriu espaço por onde muitos passaram, vilão para outros, porque provocou mortes em seu caminho, Semba acabou se salvando com poucas escoriações. Durante a fuga, moveu-se com uma desenvoltura incomum para suas quatro toneladas, o que poderia causar estranheza, não fosse ele um elefante — ou melhor, uma elefanta.
O fogo teve início a cerca de vinte metros da entrada, do lado esquerdo. Veio de baixo, a menos de três metros do chão, mas lambeu a lona com tamanha rapidez que, ao ser visto, não pôde mais ser contido. As labaredas avançaram com uma fúria inconcebível num espaço que até pouco antes era dominado pela alegria das crianças. A madeira das arquibancadas e a serragem no piso ajudaram a propagar o incêndio e a encher de fumaça o ambiente. Muitos espectadores estranharam o aumento súbito da temperatura, mas atribuíram o desconforto ao calor excessivo do dia. O ar abafado daquele domingo neutralizou as desconfianças e impediu que se suspeitasse de imediato de alguma anormalidade. O incêndio não democratizou as mortes. Suas vítimas foram principalmente os que estavam nos camarotes e nas cadeiras numeradas, mais caros, mais próximos do picadeiro, mais distantes da saída principal e separados das arquibancadas por uma cerca de madeira. Crianças, adultos e velhos foram atropelados e pisoteados quando tentavam escapar. O perigo também vinha do alto. À medida que as chamas avançavam pela cobertura, davam origem a uma chuva de gotas incandescentes, que atingiam corpos e cabeças.
Os artistas e funcionários pouco puderam ajudar. O tratorista do circo, Belmiro Cláudio Nunes, viu quando uma mulher e uma criança correram para o centro do picadeiro. Puxou-as para a saída dos fundos e tentou voltar para ver se salvava mais alguém, mas teve que desistir. O contorcionista Geraldo Alves e o anão Cebolinha assistiram impotentes ao drama dos espectadores. O domador Ramon dos Santos tratou de agir e correu para a jaula da zebra, afastando-a para longe. Os palhaços argentinos Oscar Raul Rodriguez e seu filho, Juan Raul Rodriguez, de doze anos, mais conhecidos como Astillita e Mosquito, estavam no carro-camarim quando ouviram os primeiros gritos da multidão. Com esforço, Juan conseguiu derrubar uma das chapas de zinco que cercavam o terreno do circo e saiu para a rua. Do lado de fora, observou o fogo contornar o pano e subir em direção ao mastro central. Pedaços de lona e madeira desabavam sobre a multidão. No salve-se quem puder, homens pisoteavam mulheres e crianças. Uma senhora, com as roupas em chamas, atirou-se contra as arquibancadas e rolou para apagar o fogo, com o rosto já desfigurado. Um senhor carregava uma mulher carbonizada nos braços. Três elefantes subiam sobre as patas traseiras e soltavam gritos horríveis. O que Juan viu se fixaria em sua memória para sempre.
Em meio ao caos, o domador Osvaldo Stevanovich tomou uma decisão que resultou oposta à que pretendia: soltou as amarras que sustentavam os mastros centrais, imaginando que assim a lona cairia para trás. Sem as oito cordas, as quatro estacas que amparavam o circo perderam o apoio e desabaram. Um estrondo anunciou a queda da última coluna, e a lona arriou por completo, pendendo para a frente, em direção à saída principal, e cobrindo quem ainda não havia escapado do atropelo nem se livrado da fumaça e driblado os pingos flamejantes. O Gran Circo Norte-Americano se transformou num “braseiro”, segundo a imprensa. Uma metáfora usada na época dizia que a cobertura aprisionou os espectadores como se fosse uma rede de peixe ardente. Uma comparação pertinente, já que a lona era enredada, isto é, guarnecida internamente por pequenos quadrados de corda.
O incêndio durou menos de dez minutos, o suficiente para que centenas de espectadores fossem queimados, pisoteados ou asfixiassem. Jamais tantos brasileiros morreram em tão pouco tempo e no mesmo lugar como naquele domingo em Niterói, então capital do estado do Rio de Janeiro.
O aviso de Nena se espalhou instantaneamente do circo para as rádios, das rádios para os ouvintes e alcançou o clínico geral Waldenir Bragança quando retornava com a família da cidade de Araruama, na Região dos Lagos. O médico deixou os parentes em casa e seguiu para o terreno do Gran Circo. Chegou a carregar vítimas de queimaduras para uma ambulância, até perceber que teria mais utilidade atendendo feridos no hospital. Mas, ao contrário do que seria de esperar, não foi para o Hospital Municipal Antonio Pedro (hmap), o principal da região. O motivo é que ele estava fechado, justamente no momento em que Niterói mais precisava. Tinha sido ocupado quinze dias antes por estudantes de medicina, insatisfeitos com as condições de trabalho. Bragança, que 22 anos depois se tornaria prefeito da cidade, encaminhou-se para o improvisado Hospital Psiquiátrico de Jurujuba.
A informação chegou a Maria Pérola em meio à festa de encerramento das atividades dos lobinhos, como são chamados os escoteiros de sete a onze anos, de Niterói. Um dos pais, parado junto ao carro no estacionamento da faculdade de arquitetura e engenharia, escutou a notícia e correu para alertá-la. Maria Pérola, que viria a desempenhar papel importante na tragédia, era akelá — chefe dos lobinhos — desde 1951. Ela imediatamente reuniu a chefia e incumbiu dois colegas, com a colaboração dos pais dos meninos, de encerrar a festividade sem criar pânico, ao mesmo tempo que os demais chefes seguiam em direção aos hospitais para doar sangue.
Nesse momento, Celso Peçanha repassava mentalmente a agenda, no carro oficial que o trazia de volta a Niterói. Ele tinha passado o dia em Santa Maria Madalena, no interior do estado, onde fora cumprir uma programação típica de governador: acompanhar a inauguração de obras no horto florestal da cidade e o início da construção da ponte de Santa Margarida, na estrada Campos-Madalena. Aproveitou a ocasião para fazer as promessas habituais. Anunciou que o serviço de abastecimento de água do município estava em fase de conclusão. Disse que instalaria mais uma escola na cidade, foi paraninfo das professoras da Escola Normal e pediu aos fazendeiros que colaborassem no Natal das crianças pobres e no auxílio ao Asilo da Velhice de Madalena, para que a instituição pudesse “comemorar a data magna da cristandade”. De lá, Peçanha seguiu para Conceição de Macabu, onde autorizou a criação de uma Escola Normal, anexa ao Ginásio Macabuense. Na estrada entre Maricá e Rio do Ouro, sua atenção foi despertada pela narração dramática de um locutor de rádio. O governador percebeu a gravidade da situação e pediu ao motorista que acelerasse.
Naquele domingo, o pequeno empresário José Datrino, dono de uma transportadora de cargas em Guadalupe, no Rio de Janeiro, a quase quarenta quilômetros dali, estava com a mulher e os cinco filhos em casa, na rua Manoel Barata, quando escutou o comunicado e se viu tomado por uma sensação estranha, indefinível. Não deu maior atenção até que, seis dias depois, na antevéspera do Natal, aquela impressão vaga ganhou alguma concretude ao ouvir um aviso divino. Passava pouco do meio-dia e ele entregava mercadorias em Nova Iguaçu quando uma voz astral lhe ordenou que, já no dia seguinte, deixasse seus “afazeres materiais” e representasse Jesus de Nazaré na terra. Eram três chamados espirituais, um seguido do outro: Datrino deveria “perdoar toda a humanidade, ensinar a perdoar uns aos outros e mostrar o caminho da verdade que é o nosso Pai”. Seus ajudantes notaram que nesse exato instante o patrão ficou alegre. Seguiu fielmente a convocação. No dia 24 de dezembro, conforme determinado, largou os negócios, abandonou a família e dirigiu-se para Niterói. Começava a surgir aí o profeta Gentileza, que se tornaria no futuro o personagem-símbolo do incêndio.
Nessa altura, o mundo já tomara conhecimento do que a agência de notícias Associated Press classificou de “a maior tragédia circense da história”.
Trechos de "O ESPETÁCULO MAIS TRISTE DA TERRA - O incêndio do Gran Circo Norte-Americano", de Mauro Ventura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011
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