Certos
espaços democráticos da comunidade não estão interessados em quem dá voz às agruras dos pobres
FLAVIO SOUZA, O CORAJOSO
Lívio Soares
Em
nome da clareza, é necessário eu dizer que trabalhei no Sistema Clube
de Rádio por quinze anos. A relação entre mim e eles era estritamente
profissional. Nunca me envolvi com campanhas políticas das quais
participava o dono da emissora, nunca pedi a ninguém que votasse nele
nem nunca votei nele, mesmo quando ele reunia os funcionários pedindo
apoio para as candidaturas dele; além do mais, sei que ele e que a
família dele não precisam do meu voto. Tanto é assim que têm longa
carreira política sem meu apoio. Também nunca votei no outro grupo
político local; nenhum dos grupos faz o que considero política;
obviamente, sei que esse outro pessoal também não precisa de voto meu.
Isso não que dizer que o dono do Sistema Clube de Rádio estava errado em
pedir que os funcionários da emissora votassem nele. Comento isso para
ilustrar que minha convivência com a direção da rádio sempre ficou no
campo profissional. Fiz meu trabalho da melhor maneira que pude (o que
não quer dizer que eles gostaram do que fiz); não estando mais na
emissora, não fiquei devendo favores de nenhuma natureza para eles (pois
nunca os pedi) nem eles ficaram me devendo favores de nenhuma natureza
(pois nunca me pediram).
Só
hoje, no começo da noite, fiquei sabendo do episódio ocorrido com o
Flavio Sousa, locutor, repórter e redator do Sistema Clube de Rádio. Num
programa da
emissora, Flavio criticou a elite dos Patos de Minas. Por causa disso,
ele não mais fará comentários na atração, dedicada, segundo o que me foi
informado, a debates. Enquanto escrevo esta nota, o locutor segue
trabalhando na empresa como repórter e como leitor de notícia.
Nada
é surpreendente nessa história. Nos primeiros contatos que tive com o
Flavio, ele havia me procurado para que eu ministrasse para ele aulas,
acho, de português. Na época, ele era estudante de jornalismo ou estava
prestes a começar o curso. Pensei comigo: “Esse tá começando bem, pois
está preocupado com o bem falar e o bem escrever”. Essas aulas duraram
pouco tempo, o que não fez com que eu perdesse contato com o Flavio. Não
acompanho o trabalho dele no rádio por eu não mais escutar nenhuma das
emissoras locais há um bom tempo. Do Flavio, acompanho o que ele tem
escrito, lendo o que é publicado em redes sociais, seja uma opinião,
seja um artigo, seja um conto, seja um poema. Flavio, além de
radialista, dedica-se a escrever ficção, tendo já publicado livro.
A
história entre ele, o Sistema Clube de Rádio e a elite local não
surpreende porque a opinião do Flavio, bem sei, foi expressão do
pensamento dele. Ele não estava fazendo um personagem que se dedica a
ter audiência a qualquer custo. O que Flavio disse diante do microfone
da emissora é expressão do que ele é, não uma expressão de atitude
sensacionalista. A reação da rádio não surpreende porque a mentalidade
dos que a dirigem é expressão do que pensa a elite local, do que pensa a
elite brasileira, uma elite conservadora que deseja manter às custas
dos pobres os privilégios (não merecidos) que vêm de séculos (a quem se
interessar pelo tema, indico Jessé Souza ou Darcy Ribeiro).
Flavio
não disse nada demais. Contudo, o que ele disse é gigantescamente
necessário. Ele fez um contraponto ao discurso da elite. Ora, ela, a
elite, já tem todos os espaços para apresentar o que pensa e o que (não)
faz. Os pobres não têm recursos nem estrutura técnica para que a voz
deles chegue a mais pessoas. A dor deles não aparece nos jornais,
valendo-me eu de paráfrase de canção do Chico Buarque, o qual, aliás,
não raro, é execrado pela elite que o Flavio criticou.
A direção da rádio divulgou nota,
também reveladora e nada surpreendente. A primeira coisa que chama a
atenção na nota que divulgaram é o cuidado que eles não tiveram com o
português (cuidado esse que o Flavio tem). No que a emissora divulgou há
coisas como “houveram excessos”. Contudo, o português incorreto é o
problema menor da nota; ela é sintoma do conservadorismo da elite
brasileira, que, travestida de bom-mocismo, apresenta o que chama de
pluralidade de ideias, quando tal pluralidade não há. Esse, sim, é o
grande problema da nota que a rádio divulgou. (Os problemas de português
seriam resolvidos se um revisor tivesse conferido o texto.)
Diz
a nota deles sobre o comentário que o Flavio fizera: “(...) A direção
da Rádio Clube reitera que não se trata de opinião da emissora,
tratando-se de livre manifestação do pensamento do profissional, sempre
permitida por essa empresa em toda sua história, e em especial neste
programa, criado para dar espaço a todas as vertentes de pensamentos.
Entretanto entendemos que houveram [sic] excessos e palavras mal
colocadas, que acabaram ofendendo pessoas, principalmente ligadas ao
nosso valoroso e pujante comércio local, a quem a Rádio Clube pede
desculpas”.
A
emissora diz haver nos microfones dela “espaço a todas as vertentes de
pensamentos”, mas alega ter havido “excessos e palavras mal colocadas”
por parte do Flavio. Em essência, o que Flavio disse foi que a elite não
está nem aí se os pobres não podem pagar por um exame de detecção da
covid-19 e que a elite não dá a mínima se os pobres não podem se dar o
luxo de se refugiarem contra a epidemia em espaços milionários. Por fim,
Flavio disse que uma elite burra pode servir de “púlpito para candidato
burro e despreparado”.
A
nota da emissora menciona que o discurso do Flavio ofendeu pessoas
“ligadas ao nosso valoroso e pujante comércio local”. Não bastassem o
bairrismo e a pieguice do trecho, o que Flavio disse não é agressão
pessoal; em nenhum momento ele faz referência a nome(s). Ele diz que uma
elite burra cai em balela de candidato burro. Ora, pobre burro também
cai em balela de candidato burro. Os que se sentiram ofendidos poderiam
alegar, talvez, que o Flavio só criticou a elite burra, nada tendo sido
dito sobre os pobres burros. Que a emissora, então, apresentasse um
contraponto à opinião do Flavio. Não é isso o que ocorreu. Em vez de
apresentar o contraponto, preferiram calar as opiniões do jornalista sob
o argumento de que ele foi ofensivo.
Ainda
sobre a “livre manifestação do pensamento” alegada pela emissora:
quando lá trabalhei, o dono do meio de comunicação era candidato a
prefeito de Patos de Minas. Ele concederia uma coletiva para jornais,
rádios e TVs. Fui escalado para fazer pergunta em nome da Rádio Clube FM
(salvo engano, hoje é chamada apenas de 99FM, mas posso estar enganado
quanto a isso). Faltando mais ou menos uma hora para o início da
coletiva (não lembro mais onde ela ocorreu), um dos funcionários do
Sistema Clube de Rádio, envolvido com a campanha do político e superior a
mim na hierarquia da firma, pediu-me que eu mostrasse a ele a pergunta
que eu faria durante a coletiva. Depois de a ler, ele disse: “Pergunta
outra coisa”. A pergunta era: “Já foi dito que os políticos poderiam ser
melhores se mantivessem o hábito da leitura. O que o senhor tem lido?”.
A
pergunta era simples; ademais, a leitura ou a falta dela, em si mesmas,
nada garantem. O sujeito pode ser leitor e ser um péssimo político, bem
como pode nada ler e ser um excelente político. Ainda assim, fui
“orientado” a não fazer a pergunta que eu preparara. Não a fiz. Não me
recordo do que perguntei, mas como não me remanejaram (o que fizeram com
o Flavio), devo ter perguntado algo protocolar, algo que não ofendesse
pessoas “ligadas ao nosso valoroso e pujante comércio local”.
A
opinião do Flavio não foi ofensiva; foi uma opinião sensata. Sobretudo,
ele teve uma admirável coragem, por ter dito o que disse no espaço em
que estava. Uma rádio pode adotar a política que quiser, pode manifestar
o espectro ideológico que quiser. Sei disso. O que critico é a postura
de quem se declara “um espaço democrático da comunidade”. É democrático
até o momento em que verdades sobre a elite não sejam ditas. Certos
espaços democráticos da comunidade não estão interessados em quem dá voz
às agruras dos pobres.
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