domingo, 4 de novembro de 2018

Crônica


“Na cabeça de alguém sóbrio até poderia passar ileso, mas um ébrio jamais deixaria de achar um grande mistério”



Teste de gravidez
 RUTH MANUS*


Chegou em casa meio embriagada. Nada preocupante, apenas trilili. Colocou o pijama, chutou os sapatos do meio do caminho. Lembrou-se de tirar a maquiagem – coisa que jamais aconteceria aos 18, mas que aos quase 30 começa a tornar-se imperiosa. Ao jogar o algodão no lixo, viu o elemento. Coisa estranha, uma caixa de remédios amassada, torcida, como se quisesse esconder sua própria face. Algo que, na cabeça de alguém sóbrio até poderia passar ileso, mas que um ébrio jamais deixaria de achar um grande mistério.

Não teve dúvidas. Enfiou o braço no lixo e pegou a caixa. Desamassou-a, com algum esforço. Seus olhos se arregalaram, sua boca se abriu e sua garganta puxou o ar, emitindo aquele ruído de profunda surpresa. Era um teste de gravidez. Ficou confusa. Quem? Quando? Como assim? Levou a mão ao queixo, como uma aprendiz de Sherlock Holmes. Quais as mulheres que haviam passado por aquele banheiro? Sua mãe, de 68 anos. A empregada, de 74. Sua sobrinha de 2 anos. Sua outra sobrinha de 13 – NEM BRINCA. E, sim, sua irmã, de 34, mãe da pequena de 2. Faz sentido. Meio bêbada, porém ainda sagaz.

Pegou o celular, tirou uma foto da caixa e mandou para a irmã, com a carinhosa legenda “mano, que merda é essa?”. Eram 2 da manhã. Foi para a cama confusa. Será? Outro sobrinho, já? Que delícia. Só faço a parte do entretenimento mesmo. Adormeceu, mas algumas horas depois acordou pensando: se a caixa estava lá, o teste também deve estar. Levantou-se apressada, sentou-se no chão do banheiro e começou a cavocar o lixo. Não sabemos ao certo se a culpa era do álcool ou do amor de irmã. Até que encontrou e lá estavam elas, evidentes: duas tirinhas cor de rosa. Positivo. Tentou ligar para a irmã, que nem acordou com o toque do celular. 5 da manhã e ela já não conseguia dormir.

Eram mais de 10 quando a irmã ligou e disse que não se conformava que ela tivesse vasculhado o lixo. “Parece que não me conhece, sou assim desde sempre”. A irmã disse que, mesmo com o resultado positivo, não estava assim tão certa. Queria fazer mais um teste “o digital, sabe? Que mostra de quantas semanas você está grávida.”. Ela não sabia, mas disse que compraria na farmácia antes de irem para o jantar de aniversário do pai delas.

Chegaram ao restaurante alemão. Na mesa: os pais, a avó, tios, um primo, a pequena de 2 anos e os seus dois maridos. Faltou o irmão. Paciência. Dez minutos depois da chegada, ela piscava para a irmã e apontava para o banheiro. Sussurrava “vamos, vamos logo, comprei essa porcaria e você ainda fica me enrolando?”. Foram. Ela pediu um copo de plástico para o garçom, que prontamente a atendeu, perguntando: deseja gelo? Não, não precisa. Apesar de não beber whisky, detestou imaginar um copo de xixi com pedras de gelo boiando. A irmã fez o teste. Aqueles segundo de espera até sair o resultado são mesmo tão angustiantes quanto os minutos de espera por uma porção de fritas que demora. Mas pronto: confirmado. Mais um bebê. Abraço longo.

“Olha, vou enrolar o resultado em papel e dar de aniversário pro pai”. Jura? “Ah, já que vou contar que estou grávida, pelo menos aproveito o mistério”. Voltaram para a mesa. A irmã teve a sensatez de avisar seu marido antes. Depois, entregou o rolo de papel ao pai, que abriu e, para surpresa de ambas, deu um sorriso amarelo e disse: ah, legal, obrigada. Estranharam. A mãe perguntou o que era e ele respondeu: um termômetro. Caíram na gargalhada. “Não é um termômetro. Tô grávida de novo.” E aí a família toda gritou e chorou, foi aquela cafonice afetuosa.

Nove meses se passaram. Aquela bebê já avisou que seu negócio é chegar chegando. Vem Pipa, tá na hora. A tia está te esperando com mais alegria e ansiedade do que quando espera batata frita. Vem, querida, estamos doidos para te conhecer.


 (*) Escreve aos domingos, em "O Estado de S. Paulo"

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