terça-feira, 1 de novembro de 2022

O contrato nupcial utopiano (fragmento)

Em seu mais célebre escrito, que trata

de uma ilha fictícia (Utopia), S. Thomas Morus

descreve o casamento no capítulo

intitulado "Dos Escravos"...


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(...) O homem que se mata sem motivo reconhecido pelo magistrado e pelo padre, é julgado indigno da terra e do fogo; seu corpo é privado de sepultura e atirado ignominiosamente nos pântanos. As moças não se podem casar antes dos dezoito anos; os rapazes, antes dos vinte e dois.

Os indivíduos de um e doutro sexo, convictos de se terem entregue ao prazer antes do casamento, são passíveis de uma censura severa; e o casamento lhes é completamente interdito, a menos que o príncipe releve a falta. O pai e a mãe de família, em cuja casa foi o delito praticado, ficam desonrados por não terem velado com bastante cuidado pelo comportamento de seus filhos. Esta lei parece-vos, talvez, rígida em excesso; porém, na Utopia, pensa-se que o amor conjugal não tardaria a extinguir-se entre dois seres condenados a viver eternamente um em face do outro, e a sofrer os mil inconvenientes desse comércio íntimo, se amores vagabundos e efêmeros fossem tolerados e impunes.

Aliás, os utopianos não se casam às cegas; e para melhor se escolherem, seguem um uso que, à primeira vista, nos pareceu eminentemente ridículo, mas que praticam com um sangue frio e uma seriedade verdadeiramente notáveis. Uma dama honesta e grave mostra ao prometido sua noiva, donzela ou viúva, em estado de completa nudez; e reciprocamente, um homem de probidade comprovada, mostra à rapariga seu noivo nu. Este costume singular fez-nos rir muito e o consideramos mesmo sofrivelmente estúpido; mas, a todos os nossos epigramas, os utopianos respondiam que nunca se cansariam de admirar a loucura da gente dos países estranhos. Quando, diziam eles, comprais um poldro, negócio de alguns escudos, tomais precauções infinitas. O animal está quase nu, e entretanto, tirai-lhe a sela ou o arnez, temendo que esses fracos invólucros escondam alguma úlcera. E, quando se trata de escolher uma mulher, escolha que influi sobre todo o resto da vida, e que pode fazer desta uma delícia ou uma tortura, procedeis com a maior incúria!

Como?! Prendei-vos indissoluvelmente a um corpo todo oculto em vestes que o envolvem; julgais a mulher inteira por um pedaço de sua pessoa, tão grande quanto a mão, pois só o rosto está à vista! E não temeis de encontrar depois disto alguma deformidade secreta, que vos leve a maldizer esta união arriscada! Os utopianos tinham alguma razão em falar assim, porque todos os homens não são bastante filósofos para estimar uma mulher apenas por seu espírito e coração, e os próprios filósofos não se aborreceriam por encontrar refluídas a beleza do corpo e as qualidades da alma. É certo que o mais belo ornato pode encobrir a mais repugnante deformidade; então, o coração e os sentidos do infortunado marido repelirão para bem longe a mulher da qual não poderá jamais se separar fisicamente; pois se a mistificação não se deu senão após a consumação do enlace, não destrói a sua indissolubilidade, e ao marido, não lhe resta mais do que guardar consigo a sua desventura. É pois necessário que as leis forneçam meios infalíveis de não se cair na armadilha, sobretudo na Utopia onde a poligamia é severamente proscrita e onde o casamento não se dissolve, na maioria das vezes, senão pela morte, excetuando-se o caso de adultério e de costumes absolutamente dissolutos. Nos dois casos o senado dá ao cônjuge ofendido o direito de se casar novamente; o outro é condenado a viver perpetuamente na infâmia e no celibato.

Não é permitido, sob nenhum pretexto, repudiar uma mulher de comportamento irrepreensível, sob o fundamento de alguma enfermidade corporal que haja adquirido. Abandonar assim uma esposa, no momento em que tem maior necessidade de socorros, é, aos olhos dos utopianos, uma cruel covardia; é ainda tirar à velhice toda esperança no futuro, pois não é a velhice a mãe de todos os achaques, e não é ela, já em si, uma doença? Acontece algumas vezes na Utopia que o marido e a mulher não podendo conviver juntos por incompatibilidade de gênios, procuram novas metades, que lhes prometam uma vida mais feliz e mais doce. A demanda de separação deve ser levada aos membros do senado que, após terem escrupulosamente examinado a questão, juntamente com suas mulheres, rejeitam ou autorizam o divórcio. Neste último caso, as duas partes queixosas separam-se com mútuo consentimento e casam-se em segundas núpcias. O divórcio é raramente permitido; os utopianos sabem que dar a esperança de poder casar novamente com facilidade, não é o melhor meio de estreitar os laços do amor conjugal. O adultério é punido com a mais dura escravidão. Se os dois culpados eram casados, os esposos ultrajados têm, cada qual, o direito de repúdio respectivo, e podem casar-se entre si ou com quem bem lhes pareça.

Entretanto, se o cônjuge, homem ou mulher, que sofreu a injúria, ama ainda o esposo ou esposa indigna, o casamento não é rompido, com a condição, entretanto, de que o inocente siga o culpado aonde ele foi condenado a trabalhar. A reincidência no adultério é punida com a morte. As penas dos outros crimes não são invariavelmente determinadas pela lei. O senado proporciona a pena conforme a enormidade do delito. Os maridos castigam suas mulheres; os pais, seus filhos; a menos que a gravidade do delito exija uma reparação pública.

A pena ordinária, mesmo para os maiores crimes, é a escravidão. Os utopianos creem que a escravidão não é menos terrível para os celerados do que a morte, sendo, além disso, mais vantajosa para o Estado. Um homem que trabalha, afirmam, é mais útil que um cadáver; e o exemplo de um suplício perpétuo inspira um terror muito mais duradouro do que uma matança legal, que faz o culpado desaparecer num instante. Quando os condenados escravos se revoltam, são mortos como animais ferozes e indomáveis que a cadeia e a prisão não puderam conter. Mas os que suportam pacientemente sua sorte, não perdem de todo a esperança. Vêm-se infelizes que, domados pelo tempo e pelo rigor dos sofrimentos, testemunham verdadeiro arrependimento, mostrando que o crime lhes pesa com mais força do que o castigo. Então, a prerrogativa do príncipe, ou a voz do povo, concede-lhes a liberdade. A simples solicitação ao deboche é passível da mesma pena que o estupro cometido. Em toda matéria criminal, a tentativa bem definida é reputada igual ao fato. Os obstáculos que impedem a execução de uma má intenção não justificam aquele que a concebeu, e que, por certo, teria cometido o mal se tivesse podido. 


By Santo Thomas Morus