(...) O homem que se mata sem motivo reconhecido pelo
magistrado e pelo padre, é julgado indigno da terra e do
fogo; seu corpo é privado de sepultura e atirado
ignominiosamente nos pântanos.
As moças não se podem casar antes dos dezoito anos;
os rapazes, antes dos vinte e dois.
Os indivíduos de um e doutro sexo, convictos de se terem
entregue ao prazer antes do casamento, são passíveis de
uma censura severa; e o casamento lhes é completamente
interdito, a menos que o príncipe releve a falta. O pai e a
mãe de família, em cuja casa foi o delito praticado, ficam
desonrados por não terem velado com bastante cuidado
pelo comportamento de seus filhos.
Esta lei parece-vos, talvez, rígida em excesso; porém, na
Utopia, pensa-se que o amor conjugal não tardaria a
extinguir-se entre dois seres condenados a viver
eternamente um em face do outro, e a sofrer os mil
inconvenientes desse comércio íntimo, se amores
vagabundos e efêmeros fossem tolerados e impunes.
Aliás,
os utopianos não se casam às cegas; e para melhor se
escolherem, seguem um uso que, à primeira vista, nos
pareceu eminentemente ridículo, mas que praticam com um
sangue frio e uma seriedade verdadeiramente notáveis.
Uma dama honesta e grave mostra ao prometido sua
noiva, donzela ou viúva, em estado de completa nudez; e
reciprocamente, um homem de probidade comprovada,
mostra à rapariga seu noivo nu.
Este costume singular fez-nos rir muito e o consideramos
mesmo sofrivelmente estúpido; mas, a todos os nossos
epigramas, os utopianos respondiam que nunca se
cansariam de admirar a loucura da gente dos países
estranhos.
Quando, diziam eles, comprais um poldro, negócio de
alguns escudos, tomais precauções infinitas. O animal está
quase nu, e entretanto, tirai-lhe a sela ou o arnez, temendo
que esses fracos invólucros escondam alguma úlcera. E,
quando se trata de escolher uma mulher, escolha que influi
sobre todo o resto da vida, e que pode fazer desta uma
delícia ou uma tortura, procedeis com a maior incúria!
Como?! Prendei-vos indissoluvelmente a um corpo todo
oculto em vestes que o envolvem; julgais a mulher inteira
por um pedaço de sua pessoa, tão grande quanto a mão,
pois só o rosto está à vista! E não temeis de encontrar
depois disto alguma deformidade secreta, que vos leve a
maldizer esta união arriscada!
Os utopianos tinham alguma razão em falar assim, porque
todos os homens não são bastante filósofos para estimar
uma mulher apenas por seu espírito e coração, e os próprios
filósofos não se aborreceriam por encontrar refluídas a
beleza do corpo e as qualidades da alma. É certo que o mais
belo ornato pode encobrir a mais repugnante deformidade;
então, o coração e os sentidos do infortunado marido
repelirão para bem longe a mulher da qual não poderá
jamais se separar fisicamente; pois se a mistificação não se
deu senão após a consumação do enlace, não destrói a sua
indissolubilidade, e ao marido, não lhe resta mais do que
guardar consigo a sua desventura.
É pois necessário que as leis forneçam meios infalíveis de
não se cair na armadilha, sobretudo na Utopia onde a
poligamia é severamente proscrita e onde o casamento não
se dissolve, na maioria das vezes, senão pela morte,
excetuando-se o caso de adultério e de costumes
absolutamente dissolutos.
Nos dois casos o senado dá ao cônjuge ofendido o direito
de se casar novamente; o outro é condenado a viver
perpetuamente na infâmia e no celibato.
Não é permitido, sob nenhum pretexto, repudiar uma
mulher de comportamento irrepreensível, sob o fundamento
de alguma enfermidade corporal que haja adquirido.
Abandonar assim uma esposa, no momento em que tem
maior necessidade de socorros, é, aos olhos dos utopianos,
uma cruel covardia; é ainda tirar à velhice toda esperança no futuro, pois não é a velhice a mãe de todos os achaques,
e não é ela, já em si, uma doença?
Acontece algumas vezes na Utopia que o marido e a
mulher não podendo conviver juntos por incompatibilidade
de gênios, procuram novas metades, que lhes prometam
uma vida mais feliz e mais doce. A demanda de separação
deve ser levada aos membros do senado que, após terem
escrupulosamente examinado a questão, juntamente com
suas mulheres, rejeitam ou autorizam o divórcio. Neste
último caso, as duas partes queixosas separam-se com
mútuo consentimento e casam-se em segundas núpcias.
O divórcio é raramente permitido; os utopianos sabem
que dar a esperança de poder casar novamente com
facilidade, não é o melhor meio de estreitar os laços do
amor conjugal.
O adultério é punido com a mais dura escravidão.
Se os dois culpados eram casados, os esposos ultrajados
têm, cada qual, o direito de repúdio respectivo, e podem
casar-se entre si ou com quem bem lhes pareça.
Entretanto, se o cônjuge, homem ou mulher, que sofreu a
injúria, ama ainda o esposo ou esposa indigna, o casamento
não é rompido, com a condição, entretanto, de que o
inocente siga o culpado aonde ele foi condenado a
trabalhar.
A reincidência no adultério é punida com a morte. As
penas dos outros crimes não são invariavelmente
determinadas pela lei. O senado proporciona a pena
conforme a enormidade do delito.
Os maridos castigam suas mulheres; os pais, seus filhos; a
menos que a gravidade do delito exija uma reparação
pública.
A pena ordinária, mesmo para os maiores crimes, é a
escravidão. Os utopianos creem que a escravidão não é
menos terrível para os celerados do que a morte, sendo,
além disso, mais vantajosa para o Estado.
Um homem que trabalha, afirmam, é mais útil que um
cadáver; e o exemplo de um suplício perpétuo inspira um
terror muito mais duradouro do que uma matança legal, que
faz o culpado desaparecer num instante.
Quando os condenados escravos se revoltam, são mortos
como animais ferozes e indomáveis que a cadeia e a prisão
não puderam conter.
Mas os que suportam pacientemente sua sorte, não
perdem de todo a esperança. Vêm-se infelizes que,
domados pelo tempo e pelo rigor dos sofrimentos,
testemunham verdadeiro arrependimento, mostrando que o
crime lhes pesa com mais força do que o castigo. Então, a
prerrogativa do príncipe, ou a voz do povo, concede-lhes a
liberdade.
A simples solicitação ao deboche é passível da mesma
pena que o estupro cometido. Em toda matéria criminal, a
tentativa bem definida é reputada igual ao fato. Os
obstáculos que impedem a execução de uma má intenção
não justificam aquele que a concebeu, e que, por certo,
teria cometido o mal se tivesse podido.